Relançar a política de habitação
O objetivo do PRR é dar resposta às 26 mil famílias em carência habitacional. As autarquias vão ser preciosas na execução dos fundos em proximidade.
A habitação é um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” No entanto, o último Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional feito pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) em 2018 apontava para a existência de 26 mil famílias em situação de carência habitacional.
A pandemia tornou pior uma situação que já era má: casas demasiado pequenas para famílias inteiras confinadas, perda de rendimentos, o aumento dos casos de situação de sem-abrigo. Assim, e inserida na dimensão Resiliência, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) pretende promover “um acesso generalizado a condições de habitação adequadas”.
Para esta componente, estão alocados 2.733 milhões de euros, sendo que a maior fatia, 1.211 milhões, está destinada ao Programa de Apoio ao Acesso à Habitação. Este programa, com uma abordagem mais transversal do que os seus antecessores, visa a promoção da inclusão social e territorial “através do reforço do parque habitacional público e da reabilitação das habitações indignas das famílias de menores rendimentos”.
Fica do lado das autarquias uma grande parte da responsabilidade nesta componente, com o próprio plano a considerar que “materialização do apoio financeiro decorre do papel imprescindível reconhecido às autarquias locais”, fruto, especialmente, da sua proximidade. Para o economista João Abel de Freitas, no entanto, este plano tem de “avançar de forma conjugada entre o Governo e as autarquias, para se chegar a 2026 com um parque habitacional nacional, e por município, mais rico e moderno”.
O economista afirma que tudo aponta para que este investimento vá contribuir “com uma melhoria significativa das condições de vida dos habitantes dos concelhos que fizerem uma aposta forte e bem alicerçada no vetor habitação”. Mas alerta que a habitação é um processo dinâmico, que precisa sempre de manutenção e ajustamento. “Vão ser dados passos importantes, mas a dinâmica fica apenas lançada e precisa de se tornar sustentada, de continuar.”
Esta é uma opinião partilhada por Álvaro Santos, da consultora Agenda Urbana, que considera o setor da habitação uma das grandes apostas do PRR. Para este engenheiro, os municípios portugueses têm um papel muito importante a desempenhar por dois motivos: porque são “comprovadamente bons executores de fundos comunitários” e porque são o órgão de poder mais próximo das pessoas.
Os municípios portugueses têm um papel muito importante a desempenhar nesta componente por serem o órgão de poder mais próximo das pessoas
“São bons conhecedores das realidades locais e, portanto, os melhores agentes para promover o desenvolvimento integrado dos territórios que gerem, em particular no que diz respeito à implementação de soluções habitacionais condignas para os mais carenciados, assim como a promoção de novas ofertas de habitação a preços acessíveis para a classe média e para os mais jovens”, aponta ainda Álvaro Santos.
O objetivo final do PRR é, exatamente, dar resposta a pelo menos essas 26 mil famílias sinalizadas até 2026. Este número poderá, no entanto, ficar aquém daquela que é a realidade portuguesa. João Abel de Freitas considera o objetivo “exíguo para todo o país, a quem este programa básico tende a devolver um direito constitucional, o direito à habitação.” Para o economista, o PRR deve ser aproveitado para dotar o país de habitação condigna, ou seja, aquilo a que chama “habitação de qualidade”. Defende, por isso, que “neste vetor, o papel das autarquias vai ser relevante na base de programas de habitação devidamente contratualizados com o IHRU”.
Todas estas medidas pretendem melhorar a vida de muitas pessoas, mas há algo que deixa os especialistas alerta e que pode pôr em causa o sucesso da execução desta componente face do PRR: a escassez de mão-de-obra. Álvaro Santos receia que muitos municípios venham a enfrentar “enormes dificuldades” para corresponder aos requisitos requeridos pelo PRR em conhecimentos, competências e recursos tecnológicos. E explica: “muitas câmaras estão hoje descapitalizadas e não possuem a dimensão e os recursos humanos adequados para tirar os devidos benefícios do PRR.”
A crise das matérias-primas que se desenvolveu lado a lado com a pandemia e a dificuldade que muitos construtores estão a ter em entregar obras a tempo podem também ser um entrave, não só a este quadro de financiamento, como aos seguintes. “Sem dúvida que são constrangimentos muito fortes e temo mesmo que possam perigar a boa execução do PRR, assim como do Portugal 2030”, aponta Álvaro Santos.
Já para João Abel de Freitas, as carências habitacionais que se fazem sentir em todo o país, no domínio da habitação, não se circunscrevem apenas ao direito à habitação. O economista aponta outros tipos de carências “que afetam quem paga rendas caríssimas face aos rendimentos que usufrui, ficando sem recursos financeiros para uma vida digna no resto do mês, ou quem vive em casas sem condições de dimensão, aquecimento, equipamento, entre outros”. Nesse sentido, para o economista, “o vetor habitação, que até está relativamente bem dotado de meios financeiros no PRR, pode ainda ser apoiado, em certos casos, também pela eficiência energética em edifícios, no eixo Transição Climática, como já está a operacionalizar-se”.